Minha crônica preferida:
"E, se eu lhe disser que estou com
medo de ser feliz pra sempre?" pergunta ao seu analista a personagem
Mercedes, da peça Divã, que estréia hoje em Porto Alegre.
É uma pergunta que vem ao encontro do
que se debateu dias atrás num programa de tevê. O psicanalista Contardo
Calligaris comentou que ser feliz não é tão importante, que mais vale uma vida
interessante. Como algumas pessoas demonstraram certo desconforto com essa
citação, acho que vale um mergulhinho no assunto.
"Ser feliz", no contexto em
que foi exposto, significa o cumprimento das metas tradicionais: ter um bom
emprego, ganhar algum dinheiro, ser casado e ter filhos.
Isso traz felicidade? Claro que traz.
Saber que "chegamos lá" sempre é uma fonte de tranqüilidade e
segurança. Conseguimos nos enquadrar, como era o esperado. A vida tal qual
manda o figurino. Um delicioso feijão-com-arroz.
E o que se faz com nossas outras
ambições?
Não por acaso a biografia de Danuza
Leão estourou. Ali estava a história de uma mulher que não correu atrás de uma
vida feliz, mas de uma vida intensa, com todos os preços a pagar por ela. A
maioria das pessoas lê esse tipo de relato como se fosse ficção. Era uma vez
uma mulher charmosa que foi modelo internacional, casou com jornalistas
respeitados, era amiga de intelectuais, vivia na noite carioca e, por tudo
isso, deu a sorte de viver uma vida interessante. Deu sorte?
Alguma, mas nada teria acontecido se
ela não tivesse tido peito. E ela sempre teve. Ao menos, metaforicamente.
Pessoas com vidas interessantes não têm
fricote. Elas trocam de cidade. Investem em projetos sem garantia.
Interessam-se por gente que é o oposto delas. Pedem demissão sem ter outro
emprego em vista. Aceitam um convite para fazer o que nunca fizeram. Estão
dispostas a mudar de cor preferida, de prato predileto. Começam do zero
inúmeras vezes. Não se assustam com a passagem do tempo. Sobem no palco, tosam
o cabelo, fazem loucuras por amor, compram passagens só de ida.
Para os rotuladores de plantão, um
bando de inconseqüentes. Ou artistas, o que dá no mesmo. Ter uma vida
interessante não é prerrogativa de uma classe. É acessível a médicos, donas de
casa, operadores de telemarketing, professoras, fiscais da Receita,
ascensoristas.
Gente que assimilou bem as regras do
jogo (trabalhar, casar, ter filhos, morrer e ir pró céu), mas que, a exemplo de
Groucho Marx, desconfia dos clubes que lhe aceitam como sócia. Qual é a
relevância do que nos é perguntado numa ficha de inscrição, num cadastro para
avaliar quem somos? Nome, endereço, estado civil, RG, CPF. Aprovado.
Bem-vindo ao mundo feliz.
Uma vida interessante é menos
burocrática, mas exige muito mais.
Martha Medeiros, em 22 de março de
2006.
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